O que 5 redações nota mil do Enem têm em comum? Professores analisam ‘segredos’ dos textos
A pedido do g1, especialistas analisaram um exemplo de cada ano, começando pela edição de 2020. Entenda como obter sucesso na escolha de repertórios culturais, na elaboração da proposta de intervenção e na coerência/coesão da dissertação.
Por Luiza Tenente, g1
02/11/2025 05h00 Atualizado há um dia

Redações nota mil no Enem: repertórios culturais
Quais os segredos das redações nota mil do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)? O g1 selecionou um exemplo de sucesso de cada ano, de 2020 em diante, e pediu para professores traçarem um raio X desses textos:
- Como os alunos usaram os repertórios culturais?
- De que forma eles demonstraram coerência e coesão?
- Quais ingredientes escolheram para a conclusão perfeita, com proposta de intervenção adequada?
Veja abaixo os destaques mencionados pelos especialistas. Os temas foram os seguintes:
- 2020 — O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira (exemplo selecionado: Aline Soares – PB)
- 2021 — Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil (exemplo selecionado: Emanuelle Severino – MG)
- 2022 – Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil (exemplo selecionado: Ana Alice Azevedo – RJ)
- 2023 – Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil (exemplo selecionado: Catharina Ferreira – SP)
- 2024 – Desafios para a valorização da herança africana no Brasil (exemplo selecionado: Anna Beatriz Veríssimo – RN)
📺REPERTÓRIO CULTURAL
A competência II [veja mais abaixo] da redação do Enem exige que o participante utilize repertórios socioculturais relacionados ao tema para embasar seus argumentos: filmes, livros, autores, músicas, reportagens… Devem ser citações pertinentes ao assunto tratado, bem contextualizadas e articuladas com o restante do texto.
📝O problema é que alguns candidatos vêm adotando uma estratégia considerada problemática pelo Inep: eles memorizam determinadas referências (como um artigo da Constituição Brasileira ou um poema de Drummond) para usá-las em absolutamente qualquer tema proposto. Na prática, isso leva a textos genéricos, pouco aprofundados e sem citações pertinentes.
No Enem 2025, a orientação para evitar os chamados “repertórios de bolso” veio explícita na Cartilha do Participante. “Se o(a) avaliador(a) perceber que o repertório foi inserido de forma decorada, automática ou forçada, ele(a) pode avaliá-lo como não produtivo, o que poderá prejudicar a nota da competência II”, diz o documento.
“É evidente para os professores de redação e para os que trabalham efetivamente na correção do Enem que, a cada ano, ocorre um refinamento dos critérios e um maior rigor da banca quanto aos textos de excelência”, diz Márcia Pelachin, coordenadora de Redação do Colégio Rio Branco (SP).
Veja como, nos exemplos “nota mil” abaixo, os candidatos acertaram nas escolhas:
✏️ Anna Beatriz Veríssimo (RN)
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Redação de Anna Beatriz Veríssimo no Enem 2024 — Foto: Reprodução
Trechos:
- Introdução: “‘Na obra literária ‘Torto Arado’, Itamar Vieira retrata uma comunidade quilombola na fazenda Água Negra, na Bahia, relatando aspectos socioculturais relevantes para essa população afrodescendente, como os rituais religiosos e os saberes tradicionais passados pelas gerações. Fora da ficção, é nítido que a sociedade brasileira não valoriza a herança africana presente desde a histórica formação nacional. Essa problemática da invisibilidade decorre da mentalidade colonial eurocêntrica, bem como da lacuna educacional no tocante ao resgate da cultura afro-brasileira.”
- 1º parágrafo do desenvolvimento: “Dado o exposto, pode-se considerar a persistência de ideais eurocêntricos como empecilho para o reconhecimento do vasto legado africano no país, uma vez que tais formas de conhecimento são estigmatizadas em detrimento da valorização dos costumes hegemônicos dos colonizadores. Tal questão pode ser verificada sob o conceito de “racismo estrutural”, cunhado pelo antropólogo Silvio Almeida, em razão da naturalização do racismo em diversas esferas, a exemplo da linguagem e do uso de expressões como “magia negra” para vincular um sentido negativo ao que é negro. Dessa forma, o pensamento de desvalorização da herança africana se materializa no cotidiano, conforme denunciado por Almeida, e distancia a nação do desejo de aprender acerca dos costumes e valores africanos, ao atribuir estereótipos de desqualificação a esses saberes, o que aprofunda o óbice.”
Análise:
“A redação de Anna Beatriz sobre herança africana é exemplar nesse quesito: traz o livro ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Junior, que dialoga diretamente com o tema; o conceito de ‘racismo estrutural’, do antropólogo Silvio Almeida; a Lei de Diretrizes e Bases; e ainda menciona personalidades negras como Machado de Assis e o abolicionista Luiz Gama”, afirma Thiago Braga, professor do gestor da área de Linguagens do Colégio e Curso pH.
“É um repertório completamente pertinente, que não apenas enriquece o texto, mas estrutura a própria argumentação.”
✏️ Aline Soares (PB)
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Redação nota 1.000 de Aline Soares Alves, PB — Foto: Arquivo pessoal
Trechos:
- 1º parágrafo: “O filme O Coringa retrata a história de um homem que possui uma doença mental e, por não possuir atendimento psiquiátrico adequado, ocorre o agravamento do seu quadro clínico. Com essa abordagem, a obra revela a importância da saúde psicológica para um bom convívio social. Hodiernamente, fora da ficção, muitos brasileiros enfrentam situação semelhante, o que colabora para a piora da saúde populacional e para a persistência do estigma relacionado à doença psicológica. Dessa forma, por causa da negligência estatal, além da desinformação populacional, essas consequências se agravam na sociedade brasileira.”
- 3º parágrafo: “Nota-se, outrossim, que a desinformação na sociedade é outra problemática em relação ao estigma dos distúrbios mentais. Nesse aspecto, devido à escassez de divulgação de informações nas redes sociais sobre a importância da identificação e do tratamento das doenças psicológicas, há a relativização desses quadros clínicos na sociedade. Desse modo, como é retratado no filme “O Lado Bom da Vida”, o qual mostra a dificuldade de inclusão de pessoas com doenças mentais na sociedade, parte da população brasileira enfrenta esse desafio. Com efeito, essa parcela da sociedade fica à margem do convívio social, tendo em vista a prevalência do desrespeito e do preconceito na população. Nesse cenário, faz-se necessária uma mudança de postura das redes midiáticas.”
Análise:
No Enem 2020, Aline Soares escolheu duas obras cinematográficas para escrever sobre o estigma associado a transtornos mentais: “Coringa” e “O Lado Bom da Vida”.
“Isso ampliou o alcance interpretativo do texto e demonstrou intertextualidade cultural produtiva”, afirma Marilurdes Cruz Borges, do curso de Linguística da Universidade de Franca.
Cláudia de Fátima Oliveira, da mesma instituição, dá detalhes:
- o uso de “Coringa” na introdução já apresenta o tema e fundamenta a tese sobre negligência estatal e desinformação social;
- “O Lado do Bom da Vida” aparece no desenvolvimento como um exemplo complementar.
“Os filmes não substituem a argumentação: eles a enriquecem. Esse uso é exemplar para a Competência 2, pois é pertinente, legitimado e produtivo”, afirma a docente.
✏️ Ana Alice Azevedo (RJ)
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Trecho da Redação do Enem de Ana Alice de Souza Azevedo. — Foto: Reprodução
Trecho:
- Introdução: “Na primeira fase do Romantismo, os aspectos da natureza brasileira e os povos tradicionais foram intensamente valorizados nas obras, criando um movimento ufanista em relação a características nacionais. Tal quadro de valorização, quando comparado à realidade, não foi perpetuado, apresentando preocupantes desafios para a exaltação das comunidades nativas na contemporaneidade. Nesse sentido, a problemática não só deriva da inércia estatal, mas também do descaso social.”
Análise:
“Ana Alice, no texto sobre povos tradicionais, também impressiona ao mobilizar o Romantismo brasileiro, especificamente sua primeira fase ufanista, criando um contraponto histórico interessante: a valorização das comunidades nativas já existiu na cultura brasileira e precisa ser retomada”, diz Braga.
🔃COERÊNCIA E COESÃO

Redações nota mil no Enem: coerência e coesão