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Presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP

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MARLUCIA RAMIRO

Supostos crimes teriam ocorrido em 2023, enquanto ela estava foragida pela participação nas manifestações antidemocráticas; Marlúcia Ramiro foi presa em dezembro daquele ano, e cumpre regime domiciliar desde abril
Por Julio Cesar Lyra — Rio de Janeiro
25/06/2025 01h00 Atualizado agora

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Presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP
Presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP — Foto: Reprodução/Facebook
RESUMO
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Acusada de participação direta nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, a paulista Marlúcia Ramiro, de 63 anos, também é investigada por suspeita de abuso físico, psicológico e sexual contra duas meninas em Buritizal, no interior de São Paulo. A denúncia partiu da mãe das crianças, que à época tinham 8 e 2 anos, e os crimes teriam ocorrido em 2023, enquanto Marlúcia ainda estava foragida. Ela chegou a ser presa em dezembro daquele ano, e cumpre regime domiciliar desde o último mês de abril, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

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Os abusos aconteceram entre agosto e dezembro, segundo a mãe das crianças. Na época, Marlúcia morava com a família. A mãe das meninas, uma profissional de marketing de 36 anos, não será identificada para preservar a identidade das filhas. A denúncia foi apresentada ao Conselho Tutelar de Buritizal, registrada na Polícia Civil e encaminhada à Justiça. O caso é acompanhado pela 2ª Promotoria de Justiça de Igarapava (MPSP), e Marlúcia nega as acusações.

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Ao GLOBO, a mãe das crianças contou ter conhecido Marlúcia após as eleições de 2018, quando ambas participavam de manifestações bolsonaristas no estado de São Paulo. Com o tempo, tornaram-se amigas. Anos depois, a mãe das vítimas — que vivia em Sumaré, na Região Metropolitana de Campinas — se mudou para Buritizal, no interior. A mulher afirma ter recebido uma ligação de Marlúcia em agosto de 2023.

— Falou que estava com algumas dificuldades financeiras, que a aposentadoria não tinha dado certo e que precisava ficar um tempo comigo no interior. Ela se ofereceu para cuidar das minhas filhas enquanto eu trabalhava. E foi assim que ela veio para a minha casa. Não achei nada ruim — relata.

Durante a estadia, a mãe diz ter notado mudanças no comportamento das filhas. A criança de dois anos, diagnosticada com autismo, passou a chorar constantemente, acordava assustada e se recusava a comer. A mais velha, com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ficou retraída e isolada. A bebê também começou a apresentar hematomas frequentes, registrados inclusive em documentos da creche onde estudava.

Creche registrou episódios incomuns em agenda, segundo a mãe das meninas; Marlúcia Ramiro tomava conta das crianças — Foto: Arquivo pessoal
Creche registrou episódios incomuns em agenda, segundo a mãe das meninas; Marlúcia Ramiro tomava conta das crianças — Foto: Arquivo pessoal
Creche registrou episódios incomuns em agenda, segundo a mãe das meninas; Marlúcia Ramiro tomava conta das crianças — Foto: Arquivo pessoal
Creche registrou episódios incomuns em agenda, segundo a mãe das meninas; Marlúcia Ramiro tomava conta das crianças — Foto: Arquivo pessoal
Criança apresentou hematomas; mãe acusa Marlúcia Ramiro de estar envolvida em agressões contra as meninas em 2023, quando tinham 8 e 2 anos — Foto: Arquivo pessoal
Criança apresentou hematomas; mãe acusa Marlúcia Ramiro de estar envolvida em agressões contra as meninas em 2023, quando tinham 8 e 2 anos — Foto: Arquivo pessoal

Filha revelou episódios de violência
No fim de 2023, os sinais se agravaram. Duas situações com sobrinhos da mãe reforçaram as suspeitas. Uma prima das crianças relatou ter visto Marlúcia agredir a bebê: À tia, a sobrinha contou que a mulher sacudiu a menina com força e a jogou no chão, deixando-a desnorteada. Questionada, Marlúcia teria dito que era uma “brincadeira”.

Em outro momento, durante um lanche, uma conversa entre as filhas e os sobrinhos levantou um alerta:

— Lembro que um dia meus sobrinhos estavam em casa comendo panetone, já perto do fim do ano. Um deles fez um comentário como: “Ah, não vai comer tudo porque senão depois a culpa é da [prima mais velha] e essa mulher não vai deixar mais ela comer”. E eu falei: “Como é que é? Quem não vai deixar ela comer?”. Eles ficaram olhando um para a cara do outro, desconversaram e saíram — relata a mãe.

No dia seguinte, ela decidiu conversar com a filha mais velha:

— Esperei a Marlúcia sair, porque ela tinha arrumado um serviço com uma moça que faz bolos na cidade. Falei com a minha filha mais velha: “Vamos conversar. O que está acontecendo?”. Ela começou a chorar e percebi que ela tremia o queixo, com medo. E aí falou: “Mãe, promete que não vai contar para ninguém que fui eu que falei?” — lembra.

A criança então revelou uma rotina de maus-tratos, que aconteciam durante todo o dia, sempre enquanto a mãe estava em horário de trabalho — abandono, restrição de alimentos, agressões físicas e psicológicas faziam parte do cotidiano, segundo a criança.

De acordo com o relato, Marlúcia tinha o hábito de trancar a menina fora de casa, exposta ao sol, sob o pretexto de fazer limpeza no imóvel:

— Melissa disse que já urinou na roupa, não podia beber água, não podia ir ao banheiro e já precisou pular a janela do quarto porque estava passando mal do lado de fora, no sol. Ela fazia de maldade, de ruindade. Não se coloca uma criança para fora para limpar uma casa — denuncia.

Presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP — Foto: Reprodução/Facebook
Presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP — Foto: Reprodução/Facebook
Apesar da casa estar abastecida, os alimentos não eram oferecidos às crianças. Segundo a mãe, uma professora da filha mais velha teria afirmado que a menina chegava às aulas com fome e pedia para merendar assim que entrava na escola.

— Eu reparava que fazia despensa e muita coisa ia para o lixo. Eu perguntava para ela se as crianças não estavam comendo, e ela dizia que as meninas “não gostavam” [de comer]. Mas minha filha me contou que, na verdade, era ela quem não deixava. Dizia: “Já passou da hora de tomar café, agora não vai comer nada”, por exemplo.

As agressões verbais também eram constantes. A filha mais velha, diagnosticada com TDAH, era alvo de xingamentos e comparações cruéis, segundo a mãe.

— Ela chamava minha filha de burra, dizia que ela nunca ia aprender a ler ou escrever. Comparava com outras crianças — relata a mãe.

A bebê, com autismo, era agredida:

— Ela afogava a bebê na banheira, batia com chinelo. Tudo isso minha filha mais velha conta ter visto — lamenta.

Após os relatos, a mãe decidiu expulsar Marlúcia da casa. Antes de acionar o Conselho Tutelar, telefonou para a filha da investigada, que a alertou sobre o mandado de prisão relacionado ao 8 de janeiro e revelou que a mãe estava foragida.

‘Foi presa porque eu denunciei’
A própria filha de Marlúcia teria incentivado a denúncia da localização da mãe.

— Liguei para a filha dela e falei: “Busque a tua mãe aqui”. A filha dela mandou eu chamar a polícia. Disse que Marlúcia estava foragida, que o próprio marido já havia denunciado e que eu deveria chamar a polícia. Fui até a praça, conversei com um amigo policial. Eles foram até onde ela estava e a conduziram para a delegacia. Ela foi presa porque eu denunciei — afirma.

Após a prisão, a mãe das vítimas buscou o Conselho Tutelar, e o caso foi encaminhado ao Ministério Público. O GLOBO teve acesso a trechos dos processo, que tramita em sigilo, segundo o MP. A investigação revelou que Marlúcia já tinha antecedentes, incluindo uma acusação em Guarulhos por crimes contra a honra.

Marlúcia Ramiro ao lado de Valéria Bolsonaro; presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Marlúcia Ramiro ao lado de Valéria Bolsonaro; presa por atos golpistas do 8 de janeiro é investigada por abuso físico, psicológico e sexual contra crianças no interior de SP — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Suspeita de abuso sexual
Além disso, novos indícios apontaram para um possível abuso sexual. A filha mais velha relatou, em depoimento recente, que Marlúcia fazia fotos e vídeos das partes íntimas da irmã bebê. Ainda segundo a mãe, a criança mais nova passou a demonstrar comportamentos considerados inusuais.

— Ela começou a introduzir objetos na vagina, a tocar nas nossas genitálias. Ela não tinha esse hábito — disse a mãe.

Diante da gravidade dos novos relatos, o caso foi transferido do Juizado Especial Criminal, onde era tratado como delito de menor potencial ofensivo, para a Justiça Criminal. O Ministério Público solicitou o retorno da investigação à Delegacia, para aprofundamento, incluindo a apreensão do celular de Marlúcia.

O advogado da família, Wellington Santos, diz que Marlúcia nega os crimes e alega retaliação:

— Inicialmente ela nega as acusações, disse que isso foi uma retaliação da Amanda porque, quando ela parou de contribuir financeiramente na casa com a Amanda — relatou o advogado: — O que não faz o menor sentido. Ela é que foi morar com a Amanda. Em contrapartida, cuidou das meninas enquanto Amanda trabalhava. Não tem sentido, essa versão dela — afirma o defensor.

Em relação ao abuso sexual, embora esteja ciente da acusação — já que participou da audiência acompanhada de seu defensor —, Marlúcia ainda não se manifestou formalmente nos autos.

O Ministério Público, conforme apurou O GLOBO, chegou a cogitar uma proposta de transação penal no valor de aproximadamente R$ 706 em 2024, mas a gravidade dos novos elementos apresentados no depoimento da menina mais velha levou a uma reorientação do processo.

Procurada pelo GLOBO, a defesa de Marlúcia Ramiro não se manifestou sobre as acusações.

‘Não se dava bem com as irmãs’, diz ex-vizinha
O GLOBO procurou uma ex-vizinha de Marlúcia. Elas moraram na mesma rua, em Guarulhos, entre o fim da década de 1990 e 2023. Segundo a mulher, a investigada não construiu boas relações familiares, “não se dava bem com as irmãs” e sempre apresentou comportamento conflituoso.

— Muito doida. Ela morava sozinha com o filho mais novo na frente da minha casa, pois o pai dela não queria ela na casa dele, que era na mesma rua. Foram os pais que criaram a filha mais velha dela. Sempre falou muito mal da família, inclusive do pai, que ela cuidou até morrer. Depois que ele morreu, ela se meteu na política. Sempre achando que era superior por fazer campanha para o Bolsonaro — conta a ex-vizinha, que preferiu não ser identificada.

Presente nas investigações sobre os atos golpistas desde o início, Marlúcia teve prisão preventiva decretada a pedido da Polícia Federal. Mesmo com alegações da defesa sobre supostos problemas de saúde, sucessivos pedidos de liberdade ou substituição por prisão domiciliar foram negados ao longo de 2023 e 2024. Na época, laudos médicos indicaram que a detenta recebia atendimento adequado na unidade prisional.

A ex-vizinha questiona, no entanto, os problemas de saúde alegados pelos advogados.

— Em uma campanha do Lula, em Guarulhos, ela foi jogar pão com mortadela no povo que estava no comício. Chegou a machucar o pé em cima do caminhão. Sobre a saúde, que falam que tem problemas, sempre andou para cima e para baixo. Sempre participou de viagens. Se tivesse tanto problema não estaria em Brasília quebrando as coisas e nem teria ficado tantos dias dormindo em barraca na frente do quartel — opina.

Nas redes sociais, Marlúcia divulgava caravanas para Brasília. Ela anunciava os ônibus e recebia valores de paulistas interessados em viajar à capital federal para manifestar apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Ela manteve um perfil ativo no Facebook até 2022. Depois, não fez mais publicações.

Envolvimento nos atos golpistas
Marlúcia estava presa no Complexo Penal de Pirajuí, em São Paulo. Ela deixou a prisão e passou a cumprir regime domiciliar no início de abril, por decisão de Alexandre de Moraes, ministro do STF. A guarulhense foi condenada por participação direta nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, em que manifestantes pró-Bolsonaro invadiram e destruíram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, descontentes com o resultado das eleições presidenciais de 2022. Marlúcia responde por crimes como tentativa de golpe de Estado, associação criminosa armada e destruição de patrimônio público e histórico.

A progressão de regime foi autorizada após o encerramento da fase de instrução processual, que incluiu a coleta de provas e o envio das alegações finais pelas partes. Segundo Moraes, a manutenção do regime em unidade prisional deixa de ser necessária, mas os indícios de participação nos crimes permanecem.

Com a mudança, a ré deve cumprir uma série de medidas cautelares, entre elas:

Uso obrigatório de tornozeleira eletrônica
Proibição do uso de redes sociais
Proibição de contato com outros investigados
Proibição de concessão de entrevistas
Limitação de visitas a familiares e advogados
O descumprimento das medidas, segundo o STF, pode levar Marlúcia de volta à prisão. Ela foi denunciada formalmente pela Procuradoria-Geral da República por crimes que, somados, podem resultar em penas superiores a 30 anos de prisão. Ainda não há, no entanto, data definida para a sentença final da investigada.

Habeas corpus coletivo
Em setembro de 2022, meses antes dos atos golpistas, Marlúcia Ramiro também apareceu como uma das dezenas de pessoas listadas em um pedido de habeas corpus coletivo apresentado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A ideia era garantir que nenhum manifestante contrário ao resultado da eleição presidencial de 2022 fosse preso, multado ou impedido de protestar.

Os autores da ação alegavam que havia risco de repressão por parte das autoridades estaduais, supostamente a mando do STF ou do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Assim, solicitaram um salvo-conduto preventivo, ou seja, a autorização para circular e protestar livremente, sem risco de punições.

O pedido, no entanto, foi negado pelo ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, com o argumento de que não havia nenhuma ameaça concreta ou iminente contra os manifestantes. O magistrado também pontuou que medidas como multas ou ações policiais não justificam habeas corpus preventivo.

Vaquinha on-line
Dias após a prisão de Marlúcia, em dezembro de 2023, a filha da investigada abriu uma vaquinha on-line para arcar com os custos do processo e das viagens de uma advogada até a penitenciária. “Não temos como arcar com essas despesas, por isso estamos recorrendo a amigos e conhecidos dela”, escreveu a familiar.

Dias após a prisão de Marlúcia, em dezembro de 2023, a filha da investigada abriu uma vaquinha on-line para arcar com os custos do processo e das viagens de uma advogada até a penitenciária — Foto: Reprodução
Dias após a prisão de Marlúcia, em dezembro de 2023, a filha da investigada abriu uma vaquinha on-line para arcar com os custos do processo e das viagens de uma advogada até a penitenciária — Foto: Reprodução
A meta estabelecida para a campanha, que seguia disponível até a publicação desta reportagem — mesmo após a progressão para o regime domiciliar —, foi de R$ 10 mil. Somente R$ 2,8 mil, no entanto, foram arrecadados ao longo dos mais de 500 dias desde a prisão de Marlúcia.